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Encontro com Deus através dos sentidos

Deus nos fala através de tudo que nossos sentidos podem captar.

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O que entendemos por “Deus”?

Quando alguém me pergunta sobre minha relação pessoal com Deus, minha primeira resposta espontânea é uma pergunta: o que você entende por “Deus”? Durante décadas tenho falado de religião com pessoas do mundo inteiro, e dessa experiência aprendi uma coisa: a palavra “Deus” deve ser utilizada com muito cuidado se quisermos evitar mal-entendidos. Por outra parte, se pudéssemos nos posicionar nesse núcleo místico de que todas as tradições religiosas surgem, ele pode significar um acordo de amplo alcance entre os seres humanos. Incluindo aqueles que não se identificam com nenhuma religião organizada, estão com frequência arraigados em experiências espirituais. Aqui é onde encontro meu próprio ponto de referência para o sentido da palavra “Deus”. Essa palavra precisa estar fundada na consciência mística comum de todos os seres humanos antes de começar falar dela.

A fonte divina deve ter todas as perfeições da personalidade. Onde poderiam tê-las recebido se não fosse por meio Dele?
Em nossos melhores momentos, aqueles que sentimos mais vivos do que nunca – em nossos momentos místicos, se quiser – temos um profundo sentido de filiação. Nesses momentos temos a consciência de nos sentirmos em casa no universo; sabemos que não somos órfãos no mundo. Em nossa mente não fica dúvidas de que pertencemos a este local da Terra, em que cada membro está unido a todos os demais: dos insetos aos mamíferos, dos seus saudáveis olhos escuros até o buraco negro, dos elementos químicos até as aves, dos relâmpagos até os vaga-lumes, dos seres humanos até as hienas e todas as decomposições orgânicas. Dizer “sim” a essa ilimitada filiação mútua é o que constitui o amor. Quando falo de Deus, me refiro a esse tipo de amor, esse grande “sim” a sua filiação. Pessoalmente, experimento esse amor como o “sim” de Deus a tudo o que existe (incluindo eu mesmo) assim como meu pequeno “sim” a todas as coisas. Ao dizer esse “sim”, experimento a vida e o amor de Deus dentro de mim.

Porém, existe mais esse “sim” do amor que um simples sentido de filiação. Há também, ainda, um profundo anseio. Quem não tem vivenciado o amor tanto o anseio assim como a adesão? Paradoxalmente, ambos aumentam sua intensidade por igual. Quanto mais intimamente nos unirmos, mais anseios fazem parte plenamente. O anseio acrescenta um aspecto dinâmico ao nosso “sim” do amor. O fervor do nosso anseio se converte na expressão e a mesma medida da nossa união. Nada é estático. Tudo está em movimento com um dinamismo que é, por outra parte, muito pessoal.

Quando o amor é verdadeiro, a relação é sempre mútua. O amado é parte do amante, assim como o amante pertence à pessoa amada. Sou parte desse universo e o “Sim” divino que é sua origem, e essa relação também é recíproca. Esta é a razão pela qual posso dizer “meu Deus”, não no sentido possessivo, mas no sentido de uma relação amorosa. Agora, se a mais profunda relação é mútua, é possível que o mais ardente desejo seja mútuo? Tem que ser assim. Ainda que pareça confuso, e sinto que meu anseio por Deus é o mesmo anseio de Deus por mim. Ninguém pode ter uma relação pessoal com uma força impessoal. É certo, não devo projetar em Deus as limitações de uma pessoa; porém, a fonte divina deve ter todas as perfeições da personalidade. Onde poderiam tê-las recebido se não fosse por meio Dele?

Tem sentido então falar de uma relação pessoal com Deus. Somos conscientes disso (ao menos intuitivamente) nos momentos em que estamos vigiando mais, estamos mais vivos, e que somos plenamente mais humanos. Podemos cultivar essa relação com Deus procurando vigiar, vivendo nossa vida ao máximo.

Como Deus fala conosco?

A Bíblia expressa essas ideias com a frase “Deus disse”. Foi criado na tradição bíblica, me sinto incomodado com esse termo, ainda que fosse aversão se impor sobre os outros. O que importa é que cheguemos a um entendimento comum de que queira expressar isso em qualquer idioma. “Deus disse” é uma maneira de apontar para minha relação pessoal com a Fonte Divina. Essa relação pode ser entendida como um diálogo. Deus fala, e eu consigo responder.

Agora bem, como fala Deus? Através de tudo que existe. Cada coisa, cada pessoa, cada situação é, em última instância, uma Palavra. Essa palavra me disse algo e me pede uma resposta. A cada momento, com tudo o que há, pronuncia aquele “Sim” de forma única e nova. Ao responder, momento a momento, palavra após palavra, eu mesmo passo a ser essa Palavra que Deus pronuncia em mim através de mim.

É por isso que estar sempre vigiando é uma tarefa importante. Como vamos responder no exato momento se não estamos atentos a sua mensagem? E como podemos estar atentos se nossos sentidos não estão plenamente abertos? A poesia inesgotável de Deus vem a nós em cinco ‘idiomas’: pela visão, pela audição, pelo olfato, tato e sabor. Todos os outros é interpretação; é crítica literária, se assim queiram, mas não a poesia original. Sabemos que a poesia se resiste à tradução; podemos captar todo seu sentido unicamente em seu idioma original. Isso é bem mais certo do que falar da poesia divina das sensações. Como poderíamos dar sentido a nossa vida sem ser por meio de nossos sentidos?

A poesia inesgotável de Deus vem a nós em cinco ‘idiomas’: pela visão, pela audição, pelo olfato, tato e sabor.
Quando e quais coisas respondem nossos sentidos com mais facilidade? Se eu faço essa pergunta a mim mesmo, imediatamente penso na jardinagem. O meu monge, que tenho o privilégio de viver a maior parte do ano, tem um pequeno jardim. Para alcançar uma variedade de fragrâncias, ele cultiva jasmim, hortelã, sálvia, tomilho e oito variedades de alfazemas. Que abundância de aromas deliciosos em tão pouca porção de terra! E que variedade de sons! Chuva na primavera, vento no outono, e pássaros todo o ano: pombas, corvos, sabiás; o grito agudo da águia, a melodia e o assovio das corujas ao anoitecer. Quando usamos a vassoura, os sinos, o ruído dos portões… quem poderia por em palavras o sabor dos morangos, dos figos? Que infinidade de coisas que eu toco! Desde o gramado úmido em baixo dos meus pés descalços pela manhã, até as pedras que me encosto quando o dia esfria ao entardecer. Meus olhos vão e vem de perto para longe: desde a abelha dourada que se perde entre as pétalas das rosas, ou desde a imensa expansão do Pacífico, aparecendo lá embaixo do penhasco que se levanta o monge, até o horizonte distante em que o céu e o mar se fundem no nevoeiro.

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Sim, eu reconheço: poder preparar um lugar solitário como é este, vai ser um presente inestimável. Um lugar assim faz o coração expandir de maneira mais fácil, e ajuda a despertar os sentidos, um por um, para aproveitar intensamente a vitalidade. No entanto, a circunstância em que vivermos, nós vamos precisar buscar um tempo e um lugar para esses tipos de experiências. Isso não é um luxo, mas uma necessidade vital. Com essas experiências, se vivifica muito mais que os olhos e os ouvidos: nosso coração desperta e responde. Sem o estímulo dos sentidos, o coração permanece aborrecido, adormecido, meio morto. E na medida em que nosso coração desperta, somos capazes de assumir nossos desafios e responder com responsabilidade.

Como responder a Deus?

Geralmente ignorar a conexão que há entre a capacidade de resposta e responsabilidade, entre a agilidade dos sentidos e a problemática social. O exterior e o interior formam um todo. À medida que aprendemos a ver realmente com nossos olhos, começamos também a ver com o coração. Começamos a enfrentar aquilo que preferiríamos evitar; começamos a ver o que acontece com o mundo todo. Na medida em que aprendemos a escutar com nossos ouvidos, nosso coração começa a ouvir o clamor dos mais necessitados. Podemos do mesmo modo começar a sentir que “algo que cheira mal na Dinamarca”. Ou podemos sentar à mesa e provar as lágrimas amargas dos oprimidos, que importamos junto com o café e as bananas. Estar em conexão com nosso próprio corpo é estar em conexão com o mundo, incluindo o Terecer Mundo e outras áreas de que nosso coração adormecido se afasta por conveniência. Por isso não é de se estranhar que quem ostenta o poder, que se preocupam por manter as coisas como estão, olham com desconfiança qualquer coisa que possa reagir com as pessoas.

Em minhas viagens pude notar que é fácil perder o foco da atenção. A super saturação dos sentidos pode fazer diminuir nosso estado de alerta. Uma inundação de estímulo tende a distrair a atenção do coração. Isso me faz valorizar mais ainda meu monge, e me dá uma nova compreensão do que significa a solidão. O monge que há em cada um de nós não foge do mundo, mas busca esse local de silêncio em que o coração do mundo deixa ouvir. Todos nós, cada um em medida diferente, precisamos de solidão, já que todos precisam cultivar a plena atenção.

À medida que aprendemos a ver realmente com nossos olhos, começamos também a ver com o coração.
Como podemos fazer isso? Existe algum método para cultivar a atenção plena? É claro que existem muitos métodos; o que eu escolhi é a gratidão. A gratidão pode praticar, cultivar, aprender; e ao crescer a gratidão, cresce também nossa plena atenção. Antes de abrir meus olhos de manhã, me lembro que tenho olhos que veem, enquanto tenho milhões de irmãos e irmãs cegas, muitos deles a causa das condições em que vivem, e que poderiam melhorar se a família humana fosse mais sensata e distribuísse seus recursos racionalmente e por igual. Se abrir meus olhos com esse pensamento em mente, tenho muitas chances de ser mais agradecido pelo dom de enxergar, e ao mesmo tempo mais atento às necessidades daqueles que precisam da visão. E antes de apagar a luz à noite, anoto em um calendário de bolso uma coisa pela qual nunca antes havia me sentido agradecido. Fiz isso durante anos, e ainda assim a reserva das coisas que agradeço parece inesgotável.

A gratidão concede alegria a minha vida. Mas, como poderia me alegrar de coisas que eu suponho? Por isso, deixo de presumir, e assim as surpresas com as que me encontro não tenham fim. A atitude agradecida é uma atitude criativa, porque no fim das contas, a oportunidade é o dom que encontramos dentro de cada momento. E isso significa, sobre tudo, a oportunidade de ver, ouvir, sentir cheiro, tocar e sentir o sabor com prazer. Uma vez que nós criamos o hábito de aproveitar cada oportunidade, seremos capazes de enfrentar situações difíceis com criatividade. Mas por todas as coisas, a gratidão imprime em nós esse sentido da sociedade universal que mencionei no inicio.

Não há vinculo mais estreito que o vínculo que estabelece a gratidão, o vínculo entre o que dá e o que agradece. Tudo é dom. Viver grato é uma celebração de dar e receber da vida, um “sim” ilimitado a associação.

Nosso mundo pode sobreviver sem essa gratidão? Qualquer que seja a resposta, uma coisa é certa: dizer “sim” a associação mútua entre todos os seres que há neste mundo por um mundo mais feliz. É por isso que “Sim” é o meu sinônimo predileto para “Deus”.

Irmão David Steindl-Rast

Artigo publicado em 1997 no livro “Por amor de Deus: Manual para o Espírito”, editado por Benjamin Shields e Richard Carlson.

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